SOBRE OFENSAS E DANOS
Quem é o dono da ofensa?
A existência da ofensa não está relacionada obrigatoriamente à ação do ofensor, daquele que produz uma ação, pensamento ou comportamento.
Está em quem se sente ofendido.
Normalmente quem pensa, age ou fala de forma diferente dos que estão ao seu redor acaba gerando ofensas, mesmo que inexista a intenção de ofender.
O pastor Martin Luther King ofendeu uma maioria branca nos Estados Unidos quando, em seu discurso "Eu tenho um Sonho", propôs a existência de um mundo em que seres humanos poderiam viver em harmonia independentemente das suas diversas etnias.
Allan Kardec ofendeu aqueles que não conseguiam admitir o abraço de filosofia, religião e ciência na busca das respostas para as questões essenciais da vida como "de onde viemos?" e "para onde vamos?".
Giordano Bruno ofendeu a inquisição com suas ideias revolucionárias acerca do universo e da espiritualidade.
Francisco de Assis ofendeu seu pai rico quando preferiu viver na pobreza e abriu mão até mesmo da roupa do corpo, como metáfora de sua busca pelos tesouros da alma.
Jesus ofendeu líderes religiosos e políticos, e até mesmo o povo judeu, quando se mostrou como líder espiritual em vez de libertador político, propondo valores como amor e perdão aos que tinham os corações aprisionados pela fome de luz, pelo ódio e pela desesperança.
Sócrates ofendeu a sociedade ateniense quando incentivou o questionamento e a não aceitação de ideias vigentes, quando impulsionou a liberdade de pensamento, quando instou milhares de pessoas a não se acomodarem na ignorância.
E no cotidiano?
Um mal vestido ofende o fashionista quando desfila seu suposto mau gosto no mesmo cenário que ele.
Um gay ofende o homofóbico quando vive a liberdade de exteriorizar sua natureza sexual trocando um simples carinho com seu par em público.
Um marido ofende sua esposa quando não percebe seu novo estilo de cabelo que levou três horas para ficar pronto.
Um filho ofende seus pais quando decide não cursar medicina ou direito, opções vistas por eles como mais dignas e promissoras, e resolve cursar artes ou filosofia.
Uma esposa ofende seu marido quando resolve desenvolver-se em sua carreira ao invés de cuidar da casa e das crianças.
Um pobre ofende o rico, o feio ofende o bonito, o honesto ofende o corrupto e o realizador ofende o invejoso pelo simples fato de existirem.
A ofensa, enfim, estará em quem se sente ofendido.
Por isso falar de ofensa é diferente de falar de dano.
Se alguém me agride isso pode gerar danos em meu corpo ou desarmonizar meu mundo interno.
Assim como alguém pode causar ofensa não intencionalmente, pode também criar danos sem se dar conta.
Entretanto, na ofensa, é preciso que haja participação do ofendido.
Se um bebê que carrego no colo me dá um tapa no rosto é difícil que eu me sinta ofendido. Entretanto, se ele em sua inocência atingiu o meio do meu nariz e isso me causou dor, houve um dano.
Já se alguém me fez uma crítica de forma ferina, e se utilizou de adjetivos ácidos para se referir a mim ou a meu trabalho, posso escolher entender isso como uma ofensa ou como expressão do direito de alguém de ter seus próprios pensamentos e sentimentos a meu respeito.
E posso escolher me sentir mal com isso ou não, até mesmo posso sentir compaixão por perceber que suas observações não fazem sentido. Ou posso escolher prestar atenção e notar se o que essa pessoa me diz é coerente, se me revela um ponto a transformar em minha maneira de ser.
Não pode haver ofensa sem a participação de quem se ofende.
Mas pode haver ofensas tão recorrentes que, ao longo do tempo, se transformam em danos. Uma criança que cresceu ouvindo apenas comentários negativos a seu respeito pode ter sua autoestima fortemente abalada na vida adulta.
Desenvolver alteridade significa ser capaz de manter empatia e viver de uma forma sadia as relações “oferecendo ao outro aquilo que gostaria que o outro lhe oferecesse”. Podemos ainda estender esse princípio quando imaginamos que nem sempre aquilo que é bom para mim seria bom para o outro. Por isso em muitos instantes vai ser fundamental oferecer ao outro aquilo que ele gostaria que lhe fosse oferecido.
Sair do Eu e pensar no Nós, naquilo que é importante para quem está comigo e que tem consequências a partir daquilo que faço ou não faço torna-se capacidade fundamental para se viver lado a lado com outras pessoas.
Isso se dá tanto no âmbito maior da cidadania, como no micro espaço de uma relação a dois por exemplo.
Quando observamos as pessoas com quem nos relacionamos com mais cuidado e respeito podemos causar menos danos nos caminhos que percorremos.
Quando, por outro lado, nos conhecemos mais profundamente podemos perceber se o que causa a dor em nós é a ação do outro ou o simples fato de termos muitas feridas, afinal aquele que nos toca pode não estar nos machucando. O desconforto vem do fato de termos justamente naquele ponto uma porta aberta, uma vulnerabilidade, um complexo, um ferimento material ou subjetivo.
É importante ter condições de conhecer nossas feridas e fechá-las, ou nos ofenderemos à toa quando o outro não nos causou qualquer dano.
É importante igualmente ser simplesmente quem somos, mesmo que isso represente ofensa para aqueles que trazem suas feridas abertas ou que não sejam capazes de contemplar diferenças com respeito e acolhimento.
Pois há um ônus pesado que desaba sobre aquele que tem receio de ofender: é alguém que não pode viver de forma inteira.
Quem tem medo de ofender não pode ser diferente dos que o cercam.
Quem tem medo de ofender precisa ser, dizer e pensar exatamente da forma como querem que seja, diga e pense.
Quem tem medo de ofender não cria, não realiza, não inova.
Quem tem medo de ofender simplesmente não vive.
Kau Mascarenhas
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